Inspirando Tendência

Thiago Rosa
11 min readNov 5, 2020

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Quem joga a quinta edição de Dungeons & Dragons já conhece a inspiração. A regra é simples: quando você segue um dos seus traços de personalidade, ganha inspiração, que pode ser trocada por vantagem ou até mesmo dada para outro jogador. É para funcionar como uma espécie de bônus quando você interpreta seu personagem. A ideia é boa, mas será que a implementação se sustenta?

Como mencionei repetidas vezes ao longo dos anos, a falta de um viés narrativista em suas mecânicas é uma das coisas que mais me incomoda na quinta edição de D&D. Praticamente todos os grandes jogos que estão no mercado atualmente possuem mecânicas nesse sentido, desde os tão universalmente replicados aspectos do Fate até abordagens totalmente diferentes como o dado da fome de Vampiro: a Máscara quinta edição.

Recentemente li um artigo sobre as mecânicas de inspiração feito pelo Angry DM. Tirando a hipérbole e as profanidades pelas quais ele é famoso, o artigo é bastante interessante; explica muito bem os problemas com inspiração do jeito que está nos livros e apresenta boas soluções. O que eu achei especialmente curioso é que o Angry DM não menciona que D&D já tinha um “sistema de personalidade” antes do quarteto Traço de Personalidade/Ideal/Vínculo/Fraqueza. Ele continua na sua ficha de personagem, inclusive, só que é tratado pela quinta edição com ainda mais descaso que a inspiração — a boa, velha e controversa tendência.

Então, vai ser um papo longo e demorado, mas se vocês me ouvirem, eu vou explicar o motivo de inspiração não ser o ó do borogodó (e como mudar isso) e porque todo mundo odeia tendência (e como mudar isso); por fim, vou explicar como unir as duas mecânicas em um grande Megazord narrativista.

Inspiração é uma mecânica ruim

Antes de explicar exatamente o que torna inspiração ruim como mecânica, vamos lembrar de todos os detalhes dela. Quando você cria um personagem, você escolhe um conjunto de Características Pessoais: dois Traços de Personalidade, um Ideal, um Vínculo e uma Fraqueza (se você tiver dificuldade em escolher, cada antecedente tem uma lista; você pode até determinar aleatoriamente). Eles são exatamente o que parecem ser — frases curtas que servem de lembrete/resumo dos elementos fundamentais do seu personagem.

Isso vai soar familiar se você conhece algum jogo Fate, como Espírito do Século ou Jadepunk. Os aspectos de personagem são exatamente a mesma coisa que as características pessoais do D&D: frases que servem como lembrete/resumo dos elementos fundamentais do seu personagem. Em Fate, aspectos podem ser forçados ou invocados — quando um aspecto é forçado, uma coisa ruim acontece, mas você ganha um ponto de destino; quando um aspecto é invocado, você ganha um bônus, mas precisa pagar um ponto de destino. Isso estabelece a economia dos pontos de destino, o elemento que faz o Fate funcionar como sistema — você quer que seus aspectos sejam forçados para poder gastar esses pontos de destino para invocar os seus aspectos. Por exemplo, se eu tenho os aspectos Total Ausência de Senso de Direção e Sou Tão Irado Que Uso Três Espadas, posso escolher me perder enquanto volto para perto dos meus amigos, o que vai me dar um pontos de destino para facilitar o inevitável momento irado quando eu chegar para salvá-los com minhas três espadas da encrenca em que se meteram na minha ausência. O sistema te incentiva a se focar tanto nas características positivas quanto negativas do seu personagem e os pontos de destino fluem para mesa o tempo todo. Curiosamente, tudo o que dá certo com a economia dos pontos de destino é tudo que dá errado com a inspiração. Vamos por partes:

Quem controla a inspiração é o mestre. Ele vai determinar se você está realmente seguindo seu traço de personalidade e então te dar a inspiração (ou não). O problema para isso é que se você tem quatro jogadores, cada um com cinco características pessoais, você tem vinte delas para lembrar. Acho que eu não preciso dizer que isso é coisa pra caramba pra se lembrar — se eu vou no mercado comprar vinte coisas, esqueço da metade e volto com o carrinho cheio de cerveja de trigo e amendoim. Talvez a sua memória seja melhor que a minha e você não tenha dificuldade de lembrar de todas as vinte características pessoais de todos os seus jogadores, mas lembre-se que não é só disso que você precisa lembrar — você ainda tem que lembrar as regras do jogo, dos ganchos de história, dos planos dos vilões, das personalidades dos NPCs; você quer mesmo ter mais trabalho e mais responsabilidade só para cada jogador dizer “tenho vantagem” uma vez por sessão? Uma sugestão que o Angry DM dá é anotar as características pessoais dos jogadores em cartões e no verso escrever “Inspiração — ganhe vantagem em uma jogada ou dê para outro jogador” e pendurar no seu escudo — o que definitivamente ajuda, mas também não resolve o problema, já que você tem um monte de coisas para ler como mestre de qualquer forma. Basicamente, o mestre já tem que lembrar de um monte de coisas e se ele esquecer da inspiração a mecânica não funciona. Isso é parte de um problema mais amplo na 5e (jogar muita responsabilidade nas costas do mestre, sem motivo) e o principal defeito da inspiração.

Acontece que apesar de toda a razão de existência das características pessoais ser sustentar o sistema de inspiração, os livros sugerem que o mestre dê inspiração por outras coisas. Aí você tem a escolha entre fazer malabarismo com mais vinte coisas que você precisa decorar… ou improvisar o primeiro troço que te vier à cabeça. Em vez de uma mecânica para incentivar interpretação ou direcionar narrativa, inspiração se torna exclusivamente um suborno do mestre — se ele gosta de teatro e você fala em primeira pessoa pode ganhar inspiração, se ele gosta de Firefly e você chama a sua psi de River ele te dá inspiração, se ele gosta de cerveja de trigo e você traz uma Franziskaner Weissbier ele te dá inspiração. Talvez isso seja interessante para quem gosta de controlar o que os jogadores fazem, mas não é pra isso que a mecânica foi criada e é o extremo oposto da narrativa compartilhada.

Não se acumula e é só uma vez por sessão. Não precisa ser só uma vez por sessão, mas é isso que o livro sugere. Além disso, inspiração é um estado, não uma reserva — ou você tem inspiração ou não tem. A ideia é que os jogadores não fiquem guardando a sua inspiração até um momento crítico, que usem quando fizer sentido. Acontece que se o mestre segue a sugestão do livro (ou seja, só dá inspiração uma vez por sessão) isso incentiva que os jogadores façam exatamente o que a regra tenta evitar, guardem a inspiração para um momento crítico. Esse é o problema mais fácil de resolver — simplesmente ignore essa sugestão do livro. Você pode pensar que a regra está lá para evitar desequilíbrio, mas se você quer realmente colocar a narrativa em primeiro lugar, essa não devia ser uma preocupação sua pra começo de conversa.

O bônus não tem relação com a ação. Esse é um problema temático e a maior diferença entre as características pessoais e os aspectos. Digamos que eu tenha o traço de personalidade Protetor dos Órfãos. Se eu me jogo na frente de um órfão para defender ele de um ataque com o meu corpo, isso me dá inspiração que eu posso usar em outra ação — mas isso não quer dizer que eu tenha chances maiores de, sabe, proteger os órfãos. Você pode achar que não faz sentido que eu proteja os órfãos melhor só porque isso é importante para mim, mas faz ainda menos sentido que eu consiga desviar do sopro de um dragão uma semana depois por causa daquela vez que eu protegi os órfãos. Isso acaba tornando a sua ação menos importante, só uma forma de obter uma vantagem mais pra frente — você nem precisa conseguir proteger os órfãos, é só dizer que tentou.

É fácil de esquecer. Inspiração é uma novidade em uma edição nostálgica que quer ser aquele antigo D&D que você já adorava. Tudo é tão familiar — os seis atributos, pontos de vida, as classes, as magias… Não é nenhum crime esquecer aquelas características pessoais que você rolou aleatoriamente durante a construção do personagem. Não tem nenhuma garantia de que o seu mestre lembre, como a gente disse mais cedo, e se você quiser mesmo ganhar a tal da inspiração pode só fazer qualquer coisa que ele goste, não é?

O que torna inspiração uma mecânica ruim, então, é que ela não faz exatamente aquilo que é destinada a fazer e não se encaixa bem em um sistema tão nostálgico. Mas sei lá, talvez você goste de inspiração do jeitinho que é. Não tem problema, sério. Eu gosto dos livros do Dan Brown. Uma amiga minha (eu juro que não estou inventando isso) tem Jar Jar Binks como personagem favorito de Star Wars. Tem gente que vai em show do Latino. Acontece que gostar de uma coisa não quer dizer que essa coisa é boa, especialmente quando usamos algum critério mais técnico. Voltando ao exemplo dos livros do Dan Brown, ele tem dois problemas sérios em todas as suas obras: falhas graves de pesquisa e uma fórmula repetitiva. Reconhecer isso não quer dizer que eu goste menos dos livros, nem que os críticos estejam errados — só quer dizer que a mesma história de “acadêmico salva o mundo com conhecimentos obscuros e fica com a garota no final” continua sendo interessante pra mim de alguma forma.

Só se lembre que o fato de você gostar de uma coisa não torna ela boa. Aliás, o próximo assunto que vamos abordar é outra coisa da qual eu gosto, mas que eu sei que é objetivamente ruim.

Tendência também é uma mecânica ruim

Desde o princípio, D&D usa tendência (ou alinhamento). É a mecânica de personalidade original do sistema e uma de suas características mais famosas, sendo usada como uma forma rápida de se referir a personagens ficcionais, gerando diversos memes e alimentando longas conversas de bar sobre qual é, afinal, a tendência do Batman. Também é uma mecânica quase que universalmente odiada pelos jogadores, a ponto de ter se tornado praticamente um espaço inútil nas fichas dos personagens na quarta e quinta edições, tendo toda a sua influência direta no jogo apagada.

O principal problema da tendência é que ela não foi criada para ser uma mecânica de personalidade. Era uma forma dos autores tornarem seus jogos mais parecidos com as histórias de Michael Moorcock, com suas batalhas entre a Ordem e o Caos. Era basicamente o futebol gaúcho — você podia torcer pro Grêmio ou pro Internacional. Significava basicamente pra qual time você jogava (ou pra qual time torcia, se você não era um cara importante).

Com a entrada do eixo de Bem e Mal, a coisa se expandiu. Além de ainda significar a cor da sua camisa, sua tendência passava a significar sua personalidade, seus ideais, seus vínculos, seus defeitos. Todo mundo que compartilhava tendências tinha alguma coisa em comum, mais ou menos como uma torcida de futebol, também. Livros e mais livros na 3e foram dedicados a explicar exatamente o que era bem, mal, caos e lei. Ninguém sabe direito como é até hoje.

O grande problema da tendência é que ela depende de moralidade objetiva — algumas coisas simplesmente são Boas, outras coisas simplesmente são Más, ponto final. Isso é especialmente complicado em um jogo como D&D que tem sua origem em um modelo bem mercenário e desalmado no qual aventureiros invadem os lares de criaturas inteligentes com a pele de cor diferente, as matam, roubam tudo que elas têm e são recompensados por isso. Violência é uma parte tão integral de D&D que seu sistema de moralidade objetiva se esquivava ao máximo de dizer que matar era uma coisa ruim, com a desculpa furada que animais matam e são neutros… mas considerava venenos malignos e cobras continuavam neutras.

Além da consistência interna, D&D batia de frente com a nossa estrutura moral contemporânea. A gente vive em um mundo no qual as coisas são relativizadas, um mundo de tons de cinza. Você leva a sua bagagem cultural para o jogo e nele você acha que usar veneno para salvar milhares de vidas inocentes é uma coisa boa — acontece que o livro te diz expressamente que não é, um ato maligno é um ato maligno e ponto final. Não é por nada que as pessoas odeiam tendência: você acaba tendo que seguir o conceito de bom de um freelancer qualquer de Seattle que nem teve tempo para ler os outros livros sobre o assunto e só escreveu aquilo pra ganhar uns trocados para a cerveja do final de semana. É por isso que a Wizards of the Coast furtivamente arrancou tendência do sistema e só a deixou no jogo nominalmente, por ser uma parte tão integral da identidade do D&D.

Tendências são ruins, portanto, por dois motivos: por serem times de futebol que acham que definem sua personalidade e por usarem uma moralidade objetiva que já era ultrapassada no século passado.

Tendência + inspiração não é tão ruim assim

Então o que nós temos são duas mecânicas ruins, uma que o D&D rejeitou e uma que abraçou. Como a gente faz elas funcionarem?

A solução do AngryDM para a inspiração é tratar as características pessoais mais ou menos como os aspectos do Fate. Quando você ganha inspiração, ela serve para aquela ação específica. Voltando para o nosso exemplo de protetor dos órfãos, você ganharia vantagem no teste para defender o tal órfão. Você também pode passar essa vantagem para o seu alvo — digamos, se alguém jogasse uma bola de fogo nos órfãos (que vilão sem coração) você pode dar ao órfão vantagem em seu teste de resistência. Mais importante que o foco da inspiração estar na ação, essa mudança tira a responsabilidade de cima do mestre — agora é você, o jogador, quem é responsável pela sua inspiração e você só tem cinco coisas que precisa lembrar (em vez de vinte). AngryDM chama isso de ação inspirada.

Mas como você consegue inspiração para usar essas ações inspiradas? Você tem o seu defeito e algumas das suas outras características pessoais também têm implicações negativas — você pode optar por sofrer desvantagem em uma situação em que isso seja relevante para ganhar inspiração, que você pode usar mais tarde para uma ação inspirada. No caso do nosso protetor dos órfãos, você pode escolher ter desvantagem na defesa quando tiver um órfão em perigo, já que você não consegue se concentrar na sua própria defesa. AngryDM chama isso de escolher um problema.

Esse hack do AngryDM é bem bacana — é uma espécie de Fate-lite que usa bem as mecânicas pré-estabelecidas do D&D. Acontece que ele ignora completamente que o D&D já tinha uma mecânica de personalidade faz muito tempo, a tal da tendência. Perceba que colocando nas mãos dos jogadores o significado da tendência e usando-a no lugar das características pessoais, você tem um quadro de opções muito mais amplo para ações inspiradas e problemas escolhidos. Se eu sou Caótico e Bom posso fazer uma ação inspirada para desafiar autoridade, se sou Neutro e Maligno posso escolher um problema quando tentarem me convencer a trair os meus amigos. Melhor que isso, eu não preciso mais me preocupar em decorar cinco frases — agora eu só preciso me lembrar de duas palavras. Ainda melhor que isso, eu não tenho mais que deixar minha bagagem cultural do lado de fora da mesa de jogo — Bem, Mal, Ordem e Caos passam a ser o que eu quiser, não o que aquele freelancer de Seattle queria; não preciso me preocupar com a objetividade da moral ou com a cor da camisa dos outros, já que as repercussões mecânicas de tendências foram completamente apagadas de D&D. A tendência passa a ser o meu guia para realizar ações inspiradas e escolher problemas, passa a ser uma expressão do que eu penso do meu personagem. Passa a ser a minha conexão moral com o mundo do jogo — como devia ter sido desde o começo.

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Thiago Rosa

Redator e game designer na Jambô Editora. Autor de Karyu Densetsu.